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Setembro Amarelo — Andrew Solomon sobre o suicídio

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Detalhe do quadro “Sunflowers”, de Vincent van Gogh.

Desde 2014, acontece no Brasil o movimento Setembro Amarelo, que procura conscientizar a população sobre a prevenção do suicídio. O tema ainda não é amplamente discutido, e por isso mesmo o movimento busca fornecer mais informações sobre o suicídio. Em O demônio do meio-dia, Andrew Solomon dedica todo um capítulo ao assunto, que inicia já desfazendo o pensamento de que a depressão é sempre causadora do suicídio: “Muitos depressivos nunca se tornam suicidas. Muitos suicídios são cometidos por pessoas que não são depressivas. Os dois elementos não são partes de uma única equação lúcida, uma ocasionando a outra. São entidades separadas que com frequência coexistem, influenciando-se mutuamente.”

Publicado originalmente em 2000, O demônio do meio-dia é uma importante referência sobre a depressão, para leigos e especialistas. Entremeando o relato de sua própria batalha contra a doença com o depoimento de vítimas da depressão e a opinião de especialistas, Solomon desconstrói mitos, explora questões éticas e morais, descreve as medicações disponíveis, a eficácia de tratamentos alternativos e o impacto que a depressão tem nas várias populações demográficas (sejam crianças, homossexuais ou os habitantes da Groenlândia). No trecho que selecionamos a seguir, o autor comenta suas experiências com o suicídio e também fala sobre a busca de um “motivo” pelos parentes e amigos de um suicida.

* * *

Não sou dado a fantasias irresistíveis de suicídio. Penso em suicídio com frequência e, quando estou no auge da minha depressão, a ideia nunca está longe de minha mente; mas tende a ficar ali, brilhando com a mesma falta de realidade com que as crianças imaginam a velhice. Eu sei quando as coisas estão ficando piores porque os tipos de suicídio que imagino tornam-se mais variados e, de certo modo, mais violentos. Minhas fantasias ignoram os comprimidos em meu armário de remédios e mesmo a arma em meu cofre e me levam a pensar se as lâminas de meu barbeador poderiam ser usadas para cortar meus pulsos, ou se seria melhor usar uma faca. Cheguei até mesmo a testar uma viga só para ver se seria suficientemente forte para aguentar uma corda. Imagino o horário propício: quando eu estivesse sozinho em casa, em que hora eu poderia realizar meu suicídio. Ao dirigir nesse estado de espírito, penso muito sobre penhascos, mas então penso sobre air bags e a possibilidade de ferir outras pessoas e esse método revela-se inadequado demais para mim. Todas essas imagens são muito reais e podem ser muito dolorosas, mas até agora têm permanecido em minha imaginação. Já tive comportamentos irresponsáveis que poderiam ser chamados de suicidas e já quis morrer com frequência; nos períodos mais difíceis, brinquei com a ideia, assim como nos melhores períodos de minha vida brinquei com a ideia de aprender a tocar piano; mas isso nunca fugiu do meu controle ou se transformou numa realidade acessível. Quis deixar a vida, mas não tive impulso para retirar meu ser da existência.

Se minha depressão tivesse sido pior ou mais demorada, imagino que teria tendências mais acentuadamente suicidas, mas acho que eu não teria me matado sem uma prova forte da irreversibilidade de minha situação. Embora o suicídio aplaque o sofrimento presente, ele geralmente é posto em prática para evitar sofrimento futuro. Herdei de meu pai um forte otimismo, e, por razões que podem ser puramente bioquímicas, meus sentimentos negativos, embora às vezes intoleráveis, nunca me pareceram finais e imutáveis. Consigo me lembrar da minha incapacidade de vislumbrar o futuro durante os piores momentos de minha depressão. Ficava relaxado demais na decolagem de um avião pequeno porque pouco me importava se ele caísse e me matasse ou se me levasse até meu destino. Assumi riscos tolos quando se apresentaram a mim. Eu toparia tomar veneno, mas não estava disposto a achá-lo ou prepará-lo. Um de meus entrevistados, que sobreviveu a múltiplas tentativas de suicídio, disse que se eu nunca cortara os pulsos então nunca ficara realmente deprimido. Decidi não entrar nessa competição, conheço gente que tem sofrido enormemente, mas que jamais tentou se matar.

Na primavera de 1997, no Arizona, saltei de paraquedas pela primeira vez. Esse esporte é muitas vezes considerado uma atividade parassuicida e, se eu tivesse de fato morrido durante um salto, imagino que ele ficaria, na imaginação de minha família e amigos, ligado ao meu estado de espírito. Contudo — e acredito que seja este geralmente o caso durante um ato parassuicida —, não parecia um impulso suicida, e sim um impulso vital. Eu o fiz porque me sentia tão bem que fui capaz de fazê-lo. Ao mesmo tempo, tendo acalentado a ideia de suicídio, eu quebrara certas barreiras entre mim e uma autodestruição completa. Não queria morrer quando pulei do avião, mas não temia a morte como a temera antes de minha depressão, e assim não precisava evitá-la tão rigorosamente. Já saltei várias vezes desde então, e o prazer que sinto por minha ousadia, depois de ter vivido tanto tempo num medo irracional, é incalculável. Cada vez que estou à porta do avião, sinto o jorro de adrenalina ativar um medo real, que, como a dor real, é precioso para mim por sua simples autenticidade. Ele me lembra do motivo dessas emoções. Então vem a queda livre, a vista sobre uma região virgem, a impotência esmagadora, a beleza e a velocidade. E então a gloriosa descoberta de que o paraquedas está lá, afinal de contas. Quando o velame se abre, as correntes de ar ascendentes revertem a queda e eu subo e me afasto da terra, como se um anjo subitamente viesse em meu resgate para me carregar até o sol. E então, quando começo a descer de novo, o faço muito lentamente e vivo, num mundo de silêncio em múltiplas dimensões. É maravilhoso descobrir que o destino no qual você confiou justifica essa confiança. Que alegria tem sido descobrir que o mundo pode suportar minhas experiências mais ásperas, e sentir, mesmo ao cair, que sou sustentado firmemente pelo próprio mundo.

Tornei-me de fato consciente do que era suicídio pela primeira vez quando tinha cerca de nove anos. O pai de um colega de meu irmão se matou, e tivemos que discutir o assunto em minha casa. O homem em questão levantara na frente de sua família, fizera alguma observação extraordinária e depois pulara pela janela aberta, deixando esposa e filhos à vista de um corpo sem vida vários andares abaixo. “Algumas pessoas simplesmente têm problemas que não conseguem resolver e chegam a um ponto em que não suportam mais viver”, explicou minha mãe. “É preciso ser forte para atravessar a vida. É preciso ser um dos sobreviventes.” Não entendi bem o horror do acontecido; tinha uma característica exótica, fascinante e quase pornográfica.

Quando eu estava no ensino médio, um de meus professores preferidos deu um tiro na cabeça. Foi encontrado em seu carro, com uma Bíblia aberta a seu lado. A polícia fechou a Bíblia sem anotar a página. Lembro de discutir isso à mesa do jantar. Eu ainda não perdera ninguém realmente próximo; assim, o fato da morte dele ser um suicídio não se destacava tanto quanto se destaca agora, em retrospecto. Eu me deparava pela primeira vez com a morte. Conversamos a respeito de que ninguém jamais saberia em que página a Bíblia estava aberta, e algo literário em mim sofreu mais pela conclusão frustrada de uma vida do que por sua própria perda.

No meu primeiro ano de faculdade, a ex-namorada do ex-namorado da minha namorada pulou de um prédio no campus. Não a conhecia, mas sabia que estava implicado numa cadeia de rejeição que a incluía, e me senti culpado pela morte dessa desconhecida.

Alguns anos depois da faculdade, um conhecido meu se matou. Bebeu uma garrafa de vodca, cortou os pulsos e, aparentemente, insatisfeito com o lento escoar de seu sangue, foi para o telhado do edifício de seu apartamento em Nova York e pulou. Dessa vez eu fiquei chocado. Ele era um homem doce, inteligente e bonito, alguém de quem eu sentira inveja ocasionalmente. Naquela época, eu escrevia para o jornal local. Ele costumava pegar seu exemplar bem cedo em uma banca 24 horas, e cada vez que eu publicava algo ele era o primeiro a ligar e me dar os parabéns. Não éramos íntimos, mas nunca vou me esquecer de seus telefonemas e do tom de reverência ligeiramente inadequado com que ele tecia seu elogio. Ele costumava repetir, com uma certa tristeza, sua indecisão quanto a uma escolha de carreira e sua percepção de que eu sabia o que queria fazer. Foi a única característica melancólica que observei nele. Fora isso, ainda penso nele como uma pessoa animada. Divertia-se nas festas; na verdade, dava boas festas. Conhecia gente interessante. Por que uma pessoa assim cortaria os pulsos e pularia do telhado? Seu psiquiatra, que o vira no dia anterior, não foi capaz de esclarecer a questão. Havia um porquê a responder? Quando aconteceu, eu ainda achava que o suicídio tinha uma lógica, embora distorcida.

O suicídio, contudo, não é lógico. Laura Anderson, que tem batalhado contra uma depressão aguda, escreveu: “Por que eles sempre vêm com essa história de ‘motivo’?”. O motivo dado raramente é suficiente para o acontecido. É tarefa do analista e dos amigos buscar pistas, causas e categorias. Desde então aprendi isso nas listas de suicídio que li. As listas são longas e dolorosas. Todos tiveram algum trauma agudo próximo ao seu suicídio; um marido que insultou alguém, um amante que abandonou outro, uma pessoa que feriu muito a si mesma, alguém que perdeu seu grande amor para uma doença, alguém que faliu, alguém que destruiu o próprio carro. Alguém simplesmente acordou um dia e não queria ter acordado. Alguém que detestava as noites de sextas-feiras. Se eles se mataram, fizeram-no porque eram suicidas, não por algum raciocínio lógico. Embora o discurso médico insista que sempre há uma conexão entre doença mental e suicídio, a mídia sensacionalista sugere muitas vezes que a doença mental não tem nenhuma grande participação em suicídios. Definir causas para um suicídio nos deixa mais seguros. É a versão mais extrema da lógica segundo a qual uma depressão aguda é consequência do fato que a desencadeou. Não há linhas nítidas. Até que ponto é necessário ter instintos suicidas para tentar o suicídio, com qual intensidade é preciso sentir esses instintos para cometer o suicídio e em que ponto uma intenção se torna a outra? O suicídio pode de fato ser (como diz a Organização Mundial de Saúde) um “ato suicida de resultado fatal”, mas que motivos conscientes e inconscientes fundamentam esse resultado? Ações de alto risco — que vão desde se expor deliberadamente ao HIV até provocar a fúria de um homicida ou permanecer fora de casa numa tempestade de gelo — são frequentemente parassuicidas. Tentativas de suicídio são de escopo variado e vão desde atos totalmente deliberados e orientados para um único objetivo até aqueles levemente autodestrutivos. “O ato suicida”, escreve Kay Jamison, “é saturado de ambivalência.” A. Alvarez escreve:

As desculpas dos suicidas são geralmente casuais. O melhor que conseguem é aliviar a culpa dos sobreviventes, contentar os mais metódicos e encorajar os sociólogos em sua interminável busca por categorias e teorias convincentes. São como um incidente de fronteira tolo que acaba detonando uma grande guerra. Os verdadeiros motivos que impelem uma pessoa a pôr fim à própria vida estão em outro lugar; pertencem a um mundo interno, tortuoso, contraditório, labiríntico e geralmente invisível.

“Os jornais falam com frequência das ‘tristezas pessoais’ ou ‘doenças incuráveis’”, escreveu Camus.

Estas explicações são válidas. Mas teríamos que saber se no mesmo dia um amigo do desesperado não o tratou de modo indiferente. Ele é que é o culpado. Pois isto pode ser suficiente para precipitar todos os rancores e todas as prostrações ainda em suspensão.

E a crítica teórica Julia Kristeva descreve o total acaso do momento:

Uma traição, uma doença fatal, um acidente ou uma desvantagem que, de forma brusca, me arrancam dessa categoria que me parecia categoria normal, das pessoas normais, ou que se abatem com o mesmo efeito sobre um ser querido, ou ainda… Quem sabe? A lista das desgraças que nos oprimem todos os dias é infinita.

Em 1952, Edwin Shneidman abriu o primeiro centro de prevenção ao suicídio, em Los Angeles, e tentou produzir bases úteis (mais úteis que teóricas) para o pensamento sobre o suicídio. Propôs que ele é resultado do amor distorcido, controle despedaçado, autoimagem atacada, sofrimento e fúria.

É quase como se o drama do suicídio fosse se escrevendo sozinho, como se a peça tivesse uma mente própria. É possível não abrir os olhos ao perceber que, à medida que as pessoas, consciente ou inconscientemente, dissimulam suas dores e motivações com êxito, nenhum programa de prevenção ao suicídio pode ser 100% bem-sucedido.

Kay Jamison refere-se a tal dissimulação quando lamenta que “a privacidade mental é uma barreira impermeável”.

Alguns anos atrás, outro colega meu se matou. Ele sempre fora estranho, e de certo modo seu suicídio foi mais fácil de explicar. Eu recebera uma mensagem dele algumas semanas antes de sua morte e pretendia ligar de volta para combinar um almoço. Eu havia saído com amigos quando soube. “Alguém tem falado com fulano ultimamente?”, perguntei, quando um assunto me lembrou dele. “Você não soube?”, respondeu um de meus amigos. “Ele se enforcou há um mês.” Por algum motivo, essa imagem para mim é a pior de todas. Posso imaginar o amigo com os pulsos cortados no ar, seu corpo desintegrado depois de um salto. A imagem dele oscilando de uma viga como um pêndulo: bem, nunca consegui imaginar isso. Sei que meu telefonema e convite para almoçar não o teriam salvado de si mesmo, mas o suicídio inspira culpa, e não consigo expulsar da minha mente a ideia de que teria percebido uma pista, se eu o tivesse visto, e teria feito algo com essa pista.

Então o filho de um sócio do meu pai se matou. E então o filho de um amigo do meu pai se matou. Então, duas outras pessoas que eu conhecia se mataram. E amigos de amigos também se mataram e, desde que comecei a escrever este livro, soube de pessoas que perderam irmãos, filhos, amantes, pais. É possível compreender os rumos que podem levar alguém ao suicídio, mas a mentalidade desse momento em si, o salto necessário para realizar a ação final — isso é incompreensível e aterrorizante e tão estranho a ponto de fazer com que tenhamos a sensação de jamais ter realmente conhecido a pessoa que cometeu aquilo.

Enquanto escrevia este livro, soube de muitos suicídios, em parte devido aos mundos com os quais entrei em contato e em parte porque as pessoas olhavam para mim, através de toda a minha pesquisa, buscando uma espécie de sabedoria ou insight que eu era na verdade totalmente incapaz de oferecer. Uma amiga de quem sou próximo há dezenove anos, Chrissie Schmidt, me telefonou chocada quando um de seus colegas de faculdade enforcou-se no vão da escada atrás de seu quarto. O rapaz em questão fora eleito representante da turma. Depois de ser surpreendido bebendo (aos dezessete anos), fora removido do cargo. Fizera um discurso de renúncia ao qual todos aplaudiram de pé, depois tirara sua própria vida. Chrissie conhecera o rapaz apenas de passagem, mas ele parecia ocupar um mundo encantado de popularidade do qual ela às vezes se sentia excluída. “Depois de uns quinze minutos de descrença”, escreveu Chrissie num e-mail, “me desfiz em lágrimas. Acho que senti muitas coisas ao mesmo tempo — uma tristeza inexprimível diante da vida rompida voluntária e prematuramente; raiva da escola, um lugar sufocado pela própria mediocridade, por fazer um alarde tão grande contra a bebida e ser tão dura com o rapaz; e talvez, acima de tudo, medo de que eu, em algum momento, pudesse me enforcar no vão da escada de meu dormitório. Por que não conheci esse rapaz quando eu estava lá? Por que senti que era a única que estava tão mal, tão infeliz, quando o rapaz mais popular da escola provavelmente sentia tantas coisas iguais? Por que diabo ninguém notou que ele carregava um fardo tamanho? Todo esse tempo, deitada no meu quarto no segundo ano, desesperadamente triste e frustrada com o mundo à minha volta e a vida que estava levando… Bem, aqui estou. E sei que não teria dado aquele passo final. Sei mesmo. Mas cheguei bem perto de sentir que ele era, pelo menos, uma possibilidade. O que é isso — bravura? patologia? solidão? — que empurra alguém para além dessa borda final e fatal, quando a vida é algo que estamos dispostos a perder?” E no dia seguinte, ela acrescentou: “A morte dele agita e traz à tona todas essas perguntas não respondidas — e é insuportavelmente triste para mim neste momento precisar fazê-las e nunca ter as respostas”. Essa, basicamente, é a catástrofe do suicídio para os que sobrevivem: não apenas a perda de alguém, mas a perda da chance de persuadir essa pessoa a agir de modo diferente, a perda da chance de se ligar a ela. Não há ninguém com quem se anseie tanto entrar em contato quanto com uma pessoa que cometeu suicídio. “Se ao menos tivéssemos sabido” é a declaração dos pais de um suicida, vasculhando as próprias mentes para tentar entender que falha no amor deles permitiu um acontecimento tão surpreendente, tentando pensar o que deveriam ter dito.

* * *

Leia mais sobre O demônio do meio-dia


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